23 de agosto de 2010

"Ética, Indivíduo e Sociedade"

Li um texto interessante sobre a ética... divido com todos que se interessam pela temática.

Por Mário Cortella – Filósofo e professor
É muito animador poder encerrar um Congresso dessa natureza com o tema “Ética”. Pensar as questões da ética significa recusar a resignação do pensamento – e a resignação é, em grande parte, cumplicidade. Uma frase clássica diz: “Os ausentes nunca têm razão”. E,muitas vezes, nós, homens e mulheres, inclusive os educadores, nos ausentamos da proteção da ética, seja porque nem sempre fazemos o melhor a ser feito, seja porque nem sempre nos preocupamos com a proteção da vida coletiva. A ética é a recusa ao apequenamento da vida, do espírito, dos valores, da dignidade, do falecimento da esperança. Já dizia o educador Paulo Freire que a única briga digna de se brigar na vida é a dignidade coletiva.
Conforme afirmava o grande primeiro-ministro britânico Disraeli, “a vida é muito curta para ser pequena”. A ética é precisamente a nossa capacidade de recusar o apequenamento da vida – mais do que isso, de recusarmos o que talvez seja a pior doença de nosso tempo: o falecimento da esperança. O falecimento da esperança é tão grande que alguns de nós dizem, diariamente, a frase: “O que se pode fazer? Aqui é assim!”. Esse é um pensamento perigosíssimo. Nós vivemos numa sociedade que, muitas vezes, é atropelada pela idéia do que seja o “normal”. A violência é normal; a degradação é normal; a inadimplência é normal; a fratura ética é normal; a corrupção é normal. Cuidado! Trata-se de um procedimento perigoso, e precisamos saber lidar com isso.
Todos os dias milhões de pessoas se postam diante seus televisores, de noite, assistindo ao noticiário, e vêem a corrupção, a miséria, um incêndio numa favela, um tiroteio, a degradação do meio ambiente, e pensam: “Que horror! Alguém precisa fazer alguma coisa!”. Essa frase ecoa por todos os lugares. Expressa uma omissão, pois supõe que o que têm de ser feito deverá sê-lo por outras pessoas, não por nós. Isso é característico de uma sociedade narcísica: se eu estou com o problema da escola resolvido, assim como emprego,alimentação, saúde, alguém tem de fazer alguma coisa.
Muitas vezes a gente estabelece uma ética que pode ser, vez por outra, marcada pelo
cinismo. Por exemplo, quantas vezes dizemos: “Que horror, que nojo! Onde já se viu
desviar dinheiro público!”. Aí, você vai ao dentista e ele diz: “Com recibo ou sem recibo?”.Sem recibo. “Que horror, mensalão!”. Você compra produto pirata? “Só quando é conveniente”. Mas o produto não paga imposto! Você põe uma nota de R$ 20 na carteira de motorista para o caso de um policial te parar? Você pára o carro em fila dupla? “Ah, mas é só por um pouquinho!”. Na declaração de imposto de renda, você põe as fontes de todos os recibos? Não é interessante essa contradição?
Ética tem a ver com autenticidade e honestidade. É característica de uma pessoa íntegra, ue não tem duas caras – como aqueles que dizem uma coisa e fazem outra. “Que horror essas elites, esses políticos, onde já se viu?!”, exaltam-se muitos. Mas na casa de várias pessoas não se registra a carteira da empregada doméstica – porém, nenhum de nós gostaria de trabalhar sem registro. E todo mundo procura uma desculpa para justificar esses atos. Qual é a diferença, do ponto de vista ético, entre comprar um recibo e colocar um emenda no orçamento para receber dinheiro de ambulância? Do ponto de vista ético, é a mesma coisa. O ato de furtar independe se é um milhão ou cem reais. A primeira coisa que devemos fazer, se quisermos pensar em ética, é sairmos do terreno do cinismo, que todos nós, individualmente, vez por outra, praticamos.
Vocês se lembram do caso do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos que, em 1997, morreu queimado por cinco jovens de classe média, em Brasília, dormindo na rua, quando fora àquela cidade com outros membros de sua tribo para reivindicar a demarcação de suas terras? Pois bem, três daqueles jovens estudavam em escolas religiosas, e dois eram filhos de juízes. Isso demonstra que a questão crucial, em nosso país, não é a oposição entre escola pública e escola particular, e sim entre escola boa e escola ruim. Trata-se de algo muito sério – não devemos cair na armadilha. Uma democracia exige que enfrentemos a questão verdadeira: a questão verdadeira é a oposição entre público e privado? Jamais. A questão principal é bom versus ruim. Aqueles jovens de Brasília, quando presos, disseram:
“Pedimos desculpas, não queríamos fazer isso, desejávamos apenas nos divertir um pouco”.E completaram , de forma ainda mais terrível: “Não sabíamos que se tratava de um índio,pensávamos que fosse um mendigo”. Onde eles aprenderam que mendigo não é gente? No dia-a-dia, no nosso trabalho, no livro didático, na família.
Num país como o nosso, “analfabeto” é xingamento. Quando as nossas empregadas anotam
um recado, escrevendo erradamente as palavras, e uma criança mostra para sua mãe, em
tom de zombaria, e ambas riem em deboche, estão tripudiando sobre a miséria. Temos 18
milhões de pessoas que não conseguem ler o lema da nossa bandeira. O estilhaçamento da ética não vem só das instâncias superiores, está presente no nosso dia-a-dia: quando se omite a fonte de receita, quando não se pede a nota fiscal, quando se aceita comprar produto pirata. Se falamos em ética, indivíduo e sociedade, então temos que saber o que isso significa. De volta ao caso do assassinato do índio Galdino, lembro-me que, à época, na coluna semanal do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, na revista “Veja”, publicava-se apenas a pergunta: “Por que assassinaram o índio Galdino Jesus dos Santos? Porque pode”.Pode, mas não deve; pode, mas não precisa; pode, mas não será!
A armadilha da qual todos nós temos de escapar é supor que a temática da ética está no outro. Nós, brasileiros, a esse respeito, somos muito curiosos: numa conhecida pesquisa realizada pelo Ibope, perguntou-se se o brasileiro é racista, e 96% dos entrevistados responderam “sim”; a pergunta seguinte era “Você é racista?”, e 98% dizem “não”. Ou seja, uma impossibilidade estatística. Precisamos abandonar uma certa arrogância ao abordar o tema da ética, para que não pratiquemos a que os cristãos chamam de farisaísmo – prega-se,mas não se faz; fala-se, mas não se age.
Ética não é cosmética ou maquiagem – é algo real e concreto. Do contrário, é cinismo.
Portanto, trata-se de uma escolha, e nós somos livres para optar, confrontando-nos com dilemas. O que fará com que uma escolha seja honesta diante de um dilema ético é a integridade da pessoa. Ouve-se comumente a frase: “Todo homem tem seu preço”. Qual é o seu preço? Por que você não se vende – ou por que você se vende eticamente? Trata-se de uma questão de integridade.
A única coisa que garante a nossa capacidade de lidar com dilemas éticos, cuja resposta seja autêntica, é a nossa integridade. O que é o dilema? É a dificuldade de responder às três grandes questões da vida humana: “Quero?”, “Devo?”, “Posso?”. Há coisas que eu quero, mas não devo; há coisas que eu devo, mas não posso; há coisas que eu posso, mas não quero. A paz de espírito e a felicidade só existem quando se conciliam esses princípios. Caso contrário, sobrevêm o sofrimento e a perturbação pessoal.
O dilema é exatamente a dificuldade de responder àquelas indagações, combinando-as.
Nós que lidamos com jovens estamos diante de uma questão muito séria: parte deles vive o presente até o esgotamento. A escola pública e a escola particular têm como tarefa fazer com que esses jovens diminuam sua sofreguidão – o desespero e a ânsia de viver tudo no mesmo dia. Esse problema é tão premente, que algumas escolas já introduziram técnicas de meditação com o objetivo de permitir que os alunos diminuam o giro do motor de suas vidas no cotidiano. Talvez tenhamos criado uma geração que, do ponto de vista ético, transformou desejos em direitos. Estamos dizendo aos jovens algo perigoso, e eles começam a acreditar: a pior herança do mundo romano, a idéia de carpe diem (“aproveite o dia”). Não nos esqueçamos de que essa frase de Ovídio foi proferida antes da decadência do Império Romano, entretanto passou a valer, de fato, durante o seu declínio.
É a era do vale tudo – e a juventude acredita nisso. De onde tiraram essa idéia? Às vezes, de nós, educadores. Mostramos-lhes que não haverá futuro, meio ambiente, trabalho, segurança.Quando lhes dizemos que seu presente não existe, a música que ouvem não passa de barulho, a comida que comem é uma porcaria, que nossa infância foi melhor do que a deles, etc, reafirmamos a opinião de que eles não têm história. A eles, então, só resta viver o presente até o esgotamento.
O educador Paulo Freire dizia algo que não podemos deixar perecer: “É preciso ter
esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança
do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera”. As pessoas
esperam que tudo dê certo, tudo se resolva, tudo funcione – isso não é esperança, é espera.
A propósito do convite do SinepeRio para participar deste Congresso, lembrei-me de uma frase do monge beneditino François Rabelais, do século XVI, um grande nome da literatura francesa, que tem uma força impressionante e traduz o que muitos levam em conta na questão ética: “Conheço muitos, que não puderam, quando deviam, porque não quiseram, quando podiam”. Nós queremos, devemos e podemos. Temos de fazê-lo.
Concluo com uma frase de um homem que admiro imensamente, o alemão Albert Schweitzer (1875-1965). Como se sabe, ele foi um grande médico europeu, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz nos anos 50, e, recém-formado em medicina, foi embora para a áfrica, onde ficou por meio século. Schweitzer certa feita afirmou: “A tragédia não é quando um homem morre; a tragédia é aquilo que morre dentro de um homem enquanto está vivo”. A esperança, a possibilidade de fazer de outro modo e a maneira de reinventar não podem morrer. A ética é a recusa ao desespero, é a proteção da integridade e a forma de impedir o apequenamento da vida. A ética é o combustível da esperança.

(postado por Etel)

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